O Livro que me escreveu é uma carta de amor ao livro e às palavras.

por Natália Simões

O Livro que me escreveu é o primeiro romance do autor cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, publicado em 2025 pela Solisluna em parceria com o Selo Emília. Um tributo à literatura e à leitura, a obra escrita fora do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa aponta práticas de (re)existência ligadas à tradição das palavras para os povos africanos. Para o autor, as palavras são “(...) uma fonte de possibilidades gráficas, sonoras, visuais, plásticas, ditas, não ditas, interditas”. É um Livro-convite a ler entre duas línguas, o crioulo, de léxico português com estrutura sintática e gramatical de línguas africanas, e o português. Um encontro confluente com o autor, seu povo e suas línguas.

O prefácio de Chico César, cantautor brasileiro e parceiro de Mário Lúcio, marca os caminhos abertos para a leitura. “Eis um livro que nos lê”, ele diz, gingando com a apresentação de Pilar del Río, presidente da Fundação José Saramago, que narra a magia da vida dentro do livro, este que é, também, “o Livro dos leitores, mesmo daqueles que não sabiam que o eram”. 

Nessa obra, um jovem dedica todos os seus dias à escrita do Livro durante três décadas, escrevendo pela clarividência das palavras, dançando, revelando e sendo acobertado por elas. Está além da combinação alfabética e dos sinais de pontuação. Cada palavra – um mistério. Ao concluí-lo, envia o Livro para o editor, que não o recebe. Assim, a comunidade inicia buscas em agências postais de todos os lugares para tentar encontrar o livro ausente. 

A busca pelo livro extraviado mobiliza a memória, os afetos, o silêncio de uma comunidade que já o havia lido antes mesmo de lê-lo com os olhos. É nesse gesto de procura – por um objeto, por um sentido, por si mesmos – que os personagens se aproximam do que há de mais profundo na literatura: a capacidade de transformar ausência em presença, de fazer das lacunas um terreno fértil para a arte da fabulação.

Ao mesmo tempo, O Livro que me escreveu é uma carta de amor ao livro e às palavras. Ao ato de escrever. Nunca se escreve só, assim como o mar nunca vem só. Escrever é estar junto. Escreve-se com Flor, Arcanjo e Paco. Com Gabo e Saramago. O autor entrelaça histórias como quem costura a própria linguagem com os fios da escuta e do corpo. A narrativa não é uma linha reta, ela é em espiral, circular, desviante. Como uma roda – onde o tempo é outro.

Ler esse romance é aceitar um pacto com o tempo e o encantamento. Mário Lúcio escreve como quem escuta vozes antigas, e seu livro nos lê tanto quanto o lemos. Ao final, O Livro que me escreveu não é apenas uma ficção. É um artefato de resistência, um gesto político e poético que reafirma o poder da linguagem como território de encontro, do sonho e da liberdade. É dizer, mais uma vez, o que pode a literatura. O que pode a literatura africana.

O livro que me escreveu de Mário Lúcio Sousa foi editado no Brasil em Junho de 2025 fruto da parceria Selo Emília e Solisluna Editora.

 

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